O Brasil das pessoas travestis e transexuais



Por Daniela Andrade

Eu moro em um país que nunca em sua história as pessoas travestis e transexuais foram tratadas como gente, sujeitos de direito, nunca foram empoderadas a se transformarem em protagonistas da própria vida e do próprio discurso, é sempre a visão do outro sobre nós, um outro que se arvora de uma posição de poder a qual as pessoas travestis e transexuais raramente conseguirão alcançar.

No país em que eu moro, um país de extensões continentais, 200 milhões de habitantes, há apenas quatro hospitais públicos realizando a cirurgia de transgenitalização (leigamente nomeada de cirurgia de mudança de sexo). Os hospitais estão nas capitais dos estados do RJ, SP, GO e RS.

A NECESSIDADE de se realizar essa cirurgia diz respeito diretamente ao direito à saúde, conforme define a OMS (Organização Mundial da Saúde): saúde não é apenas e tão somente a ausência de enfermidades ou doenças, mas também um completo bem estar físico, mental e social. E muitas pessoas trans* passam uma vida vegetando pois possuem um corpo que não as representa, um corpo que lhe causa extremo sofrimento psíquico, uma depressão severa, levando em muitos casos ao auto-mutilamento e ao suicídio. 

Nesse país em que eu moro, o estado mais rico da federação e o mais populoso realiza apenas uma cirurgia dessa por mês, são doze por ano. Pessoas estão há décadas esperando pacientemente seu direito constitucional de serem operadas nesses aparelhos de saúde que, diga-se de passagem, também são sustentados com os impostos pagos por essas pessoas.

Eu moro em um país em que o governo Dilma revogou o ano passado a portaria que diminuía a idade para as pessoas trans* poderem legalmente alcançar o direito de se hormonizarem. A puberdade é uma etapa da vida em que ocorrem diversas modificações corporais e que para muitos adolescentes transexuais e travestis significa ver seu corpo se transformar em algo que não só lhes causa abominação, como enorme repulsa e incapacidade de se socializar, levando muitos deles ao auto-isolamento e à depressão.

Eu moro em um país em que há raros centros de saúde que possam atender as especificidades das pessoas travestis e transexuais, no estado de SP por exemplo, há apenas um ambulatório habilitado para isso. Ambulatório esse que está com sua capacidade de atendimento saturada, recebendo pessoas de outros estados.

Como as drogas para a hormonioterapia das pessoas trans* pedem acompanhamento médico, pois sabemos bem os efeitos da automedicação e como é preciso profissionais médicos especializados nessa questão, é quase impossível encontrar nesse país esse profissional capacitado. Tampouco na história desse país algum governo achou importante que o Ministério da Educação definisse que o estudo de gênero e sexualidade devesse ser grade obrigatória de cursos como Medicina.

Eu moro em um país em que a discriminação contra travestis e transexuais é tão imensa que a mídia e a sociedade lembram de nós em sua suma maioria apenas para cinco finalidades: chacota, exotificação, patologização, criminalização e hipersexualização. 

No país em que eu moro, 90% das travestis e mulheres transexuais se prostituem e não há qualquer paradigma dentro da sociedade de um grupo populacional com esse contingente se prostituindo. Travestis e transexuais nasceriam com o gene da prostituição? Teriam a prostituição criptografada em seus DNAs? Não, o que se sucede é que a identidade de gênero dessas pessoas é característica fundamental para portas de emprego lhes sejam fechadas, ainda que possuam muito talento e capacidade. Definiu essa sociedade que para nós só há quatro caminhos: a prostituição, o salão de beleza, o subemprego ou o desemprego. 

Nesse país em que eu moro, promoção de emprego e renda para travestis e transexuais jamais foi preocupação desse ou de qualquer outro governo.

Eu moro em um país em que grande parte das pessoas travestis e transexuais são expulsas de casa muito cedo, muitas dela ainda crianças; pois não dá para embrulhar travesti e transexual para presente, não dá para fingir para a família, para o bairro, para a sociedade que o filho ou filha são travestis e transexuais pois, geralmente irão requisitar o tratamento por um nome e um gênero divergentes daquele o qual foram registrados e registradas, e irão fazer modificações corporais.

Por isso, em função da precarização a que essas pessoas estão submetidas, somos expulsas da nossa família, da nossa rua, do nosso bairro, do nosso estado, e até mesmo do nosso país. Muitas irão procurar no exterior a consideração pelas suas humanidades que aqui lhes negaram violentamente desde que se entendem por gente.

Eu moro em um país em que travestis, transexuais e demais pessoas trans* não tem direito a ter seu nome e seu gênero reconhecidos legalmente e oficialmente, dado que aqui inexiste uma lei de identidade de gênero e nenhum governo na história desse país se preocupou em pressionar o Congresso Nacional a aprovar uma lei assim, apesar de há 14 anos projetos de leis de identidade de gênero terem sido apresentados tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal.

Eu moro em um país em que quando as pessoas travestis e transexuais dizem que precisam ser respeitadas por um nome que não as expõem ao rídiculo, ao vexame, que não desconsidera suas identidades de gênero, as pessoas cisgêneras dizem que não podem respeitá-las pois isso seria crime, crime de falsidade ideológica, mesmo que jamais tenham lido uma única linha do Código Penal e nunca tenham se esgueirado sobre a tipificação desse crime em específico.

Eu moro em um país em que quando as pessoas travestis e transexuais movem ação judicial para terem suas identidades legalmente reconhecidas, promotores de justiça e juízes dizem que só concederão o privilégio de admitir que essas pessoas são cidadãs, sujeitos de direito se elas se cirurgiarem, modificarem seus genitais. Pouco importa aqui o desejo dessas pessoas de quererem ou não se submeterem a essa cirurgia, pouco importa a fila de muitos anos para se operar, os únicos quatro hospitais públicos que realizam a cirurgia ou o preço exorbitante que se paga no mercado particular, geralmente acima dos 40 mil reais.

Eu moro em um país em que não se vê travestis e transexuais nos programas da TV, a menos que sejam tomados como seres feitos para causar o riso, para causar repulsa, para causar raiva, para causar nojo ou se deferir que não se está aqui a falar de gente, mas de objetos.

Eu moro em um país em que o mercado da prostituição exige corpos hipermodelados para quem dele querer ou necessitar se submeter. Como geralmente as pessoas travestis e transexuais estão em situação de vulnerabilidade social extrema, o mais rápido e menos oneroso é fazer uso do silicone industrial - óleo lubrificante de peças automotivas, não próprio para uso humano. Nunca na história desse país algum governante se preocupou com o extremo número de travestis e transexuais fazendo uso de silicone industrial, que ao entrar em contato com o interior do corpo humano, solidifica-se e passa a trafegar livremente por vasos sanguíneos, podendo causar trombose, AVC, infarto e sepse.

Eu moro em um país em que as escolas expulsam travestis e transexuais por conta da diária e constante transfobia a que essas pessoas são submetidas, locais onde não possuem seu nome e seu gênero respeitado, onde lhes é negado o uso de um banheiro. As escolas são verdadeiros motores de exclusão, em que se violenta e se agride travestis e transexuais com a conivência do estado sem que jamais qualquer governo tenha achado necessário que o Ministério da Educação se posicionasse criando políticas públicas de inclusão e permanência de travestis e transexuais nesses espaços.

Eu moro em um país campeão mundial de assassinato de travestis e transexuais por crimes de ódio, e quem mata travestis e transexuais nesse país não mata com um tiro ou uma facada, mas vários tiros, várias facadas, o caixão precisa ir lacrado para que todos saibam que ser travesti ou transexual é em si mesmo um crime. E quando se assassinam essas pessoas, não há mobilização, não há celeuma na mídia, a sociedade não se importa, afinal, não se considera que foi gente que morreu. Se alguém tiver de noticiar, será a imprensa marrom desacreditando e deslegitimando a identidade de gênero dessas pessoas e tratando as travestis e as mulheres transexuais como se fossem homens travestidos que tentavam enganar as pobres pessoas cis. Aliás, tomar travestis e transexuais como símbolos de uma farsa, do engodo, do engano é o que a sociedade mais sabe fazer. Travesti e transexual não tem o direito de ser vítima, e se morreu, só pode ter sido por que praticou algum crime ou por que simplesmente existiu.

E logo, esses crimes geralmente ficam impunes, ninguém cobra a investigação deles e a prisão de seus assassinos.

Nunca na história desse país esses assassinatos foram preocupação de algum governo a ponto de criarem políticas públicas para combatê-los.

Eu moro em um país em que quando se levantam as pautas dessa população, ouve-se que queremos tudo de uma vez, que isso não é para agora, que é muito difícil de falar sobre isso, que ninguém vai entender [...] e com isso, ficamos sempre para depois.

E para depois ficam nossos sonhos, nossas necessidades diárias de comer, de trabalhar, de nos vestir, de comprar remédios, de ser e existir como cidadãs e cidadãos, sujeitos de direito, ante o direito daqueles que lutam por nos discriminarem com as mais esfarrapadas desculpas: é questão de opinião, é humor, é divergência teórica.



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